Entrevista feita para a Sociedade dos Ilustradores do Brasil – SIB

Por: Luciano Ramos e Gabriel Gianordoli.
Edição: Renato Alarcão

Rui, conta pra gente como você começou a desenhar. Foi porque precisava, assim como uma pessoa come porque tem fome?

Eu diria que foi uma necessidade. Uma necessidade que sempre tive de me expressar pelo desenho. Eu não sei se seria uma coisa “vital”, um exagero talvez, com certeza foi e continua sendo algo fundamental. Sempre gostei de desenhar. Desde criança ficava lá no meu canto rabiscando horas a fio. Era uma maneira também de estar comigo mesmo. Hoje em dia eu tenho essa consciência, mas na época, logicamente, não.

Como um auto-conhecimento?

Sim, também. O desenho é um espelho, melhor dizendo, o desenho é uma imagem através do espelho – sem querer parodiar a Alice. Mas eu não tinha essa consciência toda. Atualmente os pais, pelo menos os de classe média, dão muita importância ao ato de desenhar dos filhos. Eles observam e se interessam pelos desenhos que eles fazem. Mas, na minha época e principalmente na minha família, o desenho passava ao largo das preocupações diárias, apesar de meus pais serem pessoas muitos sensíveis à arte. A questão maior era a luta pela sobrevivência. Nasci no Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão. Minha pequena e modesta família era de migrantes do Norte. Todos eram do Pará. Meu pai, mãe, tios e tias. Todos nostálgicos e desenraizados paraenses. Acho que herdei um pouco isso. Sou um pouco desarraigado, apesar de admirar a cultura carioca. Guardei desta época de infância muitos desenhos. São histórias, aventuras, castelos e heróis. Fixações que permanecem até hoje.

Foi um interesse que despertou bem cedo então.

Sim. Eu sempre aquarelava em casa, tinha lá meu pequeno estojo, ou fazia meus desenhos a lápis de cor. Nunca tive bloco de desenho, por isso desenhava sempre no verso de algum papel, ou então no verso das folhas usadas pela empresa de meu tio, irmão de minha mãe. Ele era funcionário de uma livraria e sempre me presenteava com aqueles papéis. Estou contando uma história da década de 50. A grande diversão era o rádio, com suas imagens sonoras. Realmente não gostaria de ter começado a desenhar vendo televisão. Fiz minhas primeiras garatujas ouvindo palavras no rádio, e músicas na vitrola de meu pai. Como vocês podem ver, muito distante destes monstruosos mangás, que pervertem e destroem os desenhos de tantas crianças hoje em dia. Acho sinceramente o mangá e animê pedofilia visual.

Na sua família era só você gostava de desenhar?

Eu, meus irmãos Chico (Xavier de Oliveira) e o Denoy (Denoy de Oliveira) todos desenhávamos, mas quem o fazia mais sistematicamente era eu. Certa vez meu pai, uma pessoa muito sagaz, vendo que seus filhos gostavam muito de desenhar, trouxe-nos um livro de anatomia (do Harold Foster). Se não me engano, esse livro existe até hoje, na biblioteca da casa do meu irmão Denoy, em São Paulo. Quero adiante falar deste meu amado irmão mais velho que faleceu em novembro de 1998, para minha eterna e inconsolável tristeza. Lembro que, por volta dos meus quatorze anos ou talvez um pouco mais, meu irmão Denoy, que estudava na época arquitetura, trouxe para casa um livro de anatomia da biblioteca da UFRJ. Ele foi um anjo em minha vida. Na vida do Chico também. Foi o primeiro a demonstrar interesse pelo que eu fazia, e ver no meu desenho algum valor.

Parece que os livros, o estudo e a pesquisa também te acompanham desde muito cedo, não é?

Ah sim, a partir do momento que comecei a estudar anatomia naquele livro, meu desenho mudou totalmente. Tempos depois ele me presenteou com outro livro de anatomia artística. Era um livro da professora D’Aninibale Braga. A dedicatória em bela caligrafia, assinada também pelo meu outro irmão Chico, é um relicário em minha vida. Eles assim escreveram: Mano Rui. Desejosos de que continues o que começas, esperamos, assim, um pouco ajudar. Teus manos Denoy e Francisco. 1958.

Acredito que este despertar cedo para o estudo da figura humana, hoje em dia tão esquecida, foi muito importante em minha carreira. Tenho um prazer enorme em desenhar figura, quer seja na ilustração, animação, gravura ou pintura. O desenho é o fundamento de tudo. Não quero voltar às questões de Lebrun e da Academia Real, mas o domínio do desenho continua sendo a base para qualquer artista honesto.

Na minha triste e solitária adolescência, meu pai faleceu tragicamente quando eu tinha 14 anos. Naquela época, além de desenhar, minha única diversão era ler. Na verdade eu tinha pouco interesse no ginásio. Lia tudo que caia em minhas mãos! Livros que vinham dos meus irmãos e do meu pai, que tinham gostos muito diversificados de leitura. Lembro de ter lido Schoppenhauer, Nietszche, autores anarquistas, Bergson, Alencar, Graciliano, Blasco Ibanez… A leitura até hoje é a minha companheira eterna. Realmente não sei terminar um dia sem ler alguma coisa.

Como foi estudar pintura no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e depois artes gráficas na UFRJ?

Passei dois anos no MAM praticando só pintura. Eu queria ser pintor de vanguarda, sabe? Estudar em um ateliê também ajudou a superar a questão do isolamento muito grande em que eu vivia. Fui um jovem muito tímido. A timidez é um mal terrível. Quis ser um pintor de vanguarda porque na época acontecia a chamada nova figuração. Já havia passado a fase da pintura Neo-Concreta e do Tachismo. Ainda sobre a importância da pintura na minha formação, gostaria de dizer algo que até hoje nunca falei. Quando eu tinha 16 anos, conheci a pintura de Bernard Buffet. A influência deste artista no meu trabalho foi avassaladora. Tive uma grande identificação com seu estilo. Eram figuras melancólicas, solitárias e angulosas. Uma pintura extremamente linear. Identifiquei-me também com a vida dele. Durante a guerra, ele tinha sido órfão de pai e morava com a mãe. Era um artista sincero, ficou famoso e muito rico. Na ocasião eu li que ele morava em um castelo. Era um cara bonito e tinha também muito sucesso com as mulheres. Era tudo o que eu queria. Pintar minha tristeza adolescente, ficar rico e famoso em Paris e ter muitas mulheres… Bernard Buffet se suicidou há alguns anos.

Você queria ser um pintor de galeria?

Eu queria ser um pintor realmente. Um pintor assim crítico, de temas sociais, de protesto, ligado a uma causa. Queria ser um pintor marxista! (risos). Eu tinha grande admiração pela pintura de Guttuso. Um pintor italiano figurativo que expressava o drama social em seus trabalhos. Lembro que comecei a achar o ambiente do MAM uma coisa de classe média, gente ociosa, pequeno burguesa… Naquela época eu era muito radical.

Apesar de estar em um meio onde as pessoas tinham outra origem social, outra ideologia, você encontrou bons artistas?

Sim, Claro! Lá eu estudei com o Ivan Serpa e depois com o Orlando Lazzarini. Foi um momento importante na minha vida. No MAM eu comecei a ver pintura dos grandes artistas contemporâneos, e também a ver jovens pintores como eu trabalhando.

Neste época você era apenas estudante ou já trabalhava?

Naquela época eu já trabalhava, há muito tempo, em empregos que não tinham nada a ver com arte. Fui bancário 4 anos, por exemplo.

Como foi a decisão de abandonar aqueles empregos ditos “convencionais” e optar por ser artista?

Eu estava cansado de ser bancário, queria viver do meu desenho, mas não acreditava na possibilidade de viver de pintura. Se hoje em dia eu já acho uma coisa complicada o mundo dos marchand e das galerias, o chamado gran monde das Artes Plásticas, imagine naquela época… Como pintor eu achava que meu trabalho não seria vendável. Mas como eu estava direcionado a encontrar um ofício, comecei a me interessar por artes gráficas. O meu interesse por cartazes, design e ilustração veio através do cinema de animação. A paixão pelo desenho animado remonta a minha infância. Sempre gostei de cinema e principalmente de cinema de animação. O meu sonho era estudar desenho animado no leste da Europa. Sonho que muitos anos mais tarde veio a se concretizar.

Tudo que eu podia eu lia sobre bonecos animados de Pojar, Tyrlová, Zeman e principalmente o trabalho de Jiri Trnka. Acredito que Trnka tenha sido um dos artistas que mais me influenciaram. Ele ilustrava livros infantis maravilhosamente e fazia desenhos e bonecos animados.

Trnka foi uma referência, um orientador vocacional à distância. Até hoje tenho uma profunda admiração pelo seu trabalho. Eu gostava muito de outros cineastas de animação em 2D, por exemplo, o tcheco Brdecka e o polonês Lenica. Quando no início da década de sessenta assisti pela primeira vez os desenhos “A galinha mal pintada” do Brdecka e o “Labirinto” do Lenica, eu saí do cinema convicto do que eu queria estudar e fazer.

E como foi a transição das artes plásticas para as artes gráficas?

Sobre as artes gráficas, eu tinha na época, início dos anos sessenta, uma breve intuição, hoje profunda convicção, que é impossível estudar design gráfico sem conhecer técnicas de desenho, bem como as chamadas artes gráficas tradicionais. Estou me referindo ao bico de pena, carvão, pastel, xilo, linóleo, metal e lito.

Trabalhar com as artes gráficas, para mim, era isso. Nunca trabalhei com publicidade, apesar de hoje em dia os estúdios de design, em sua grande maioria, são agências travestidas. Foi importante descobrir cedo, sem futuros enganos, que a minha vocação era direcionada para a criação de cartazes, capas de livros, ilustrações etc. Uma expressão lítero-visual. Juntar as duas linguagens que me davam grande prazer – ler e desenhar.

Acho que foi a leitura que me conduziu para a imagem das palavras, entende? A necessidade de visualizar o que eu lia me levou ao cinema de animação e à ilustração. Lembro-me quando li pela primeira vez os livros de Jorge Amado, as belas ilustrações do Santa Rosa me tocaram muito.

Que outros livros ilustrados por artistas brasileiros chamaram sua atenção?

Um livro que impressionou muito, quando eu era garoto, chegou às nossas mãos pelo meu pai. Sempre meu querido pai, mesmo com seu modesto trabalho, pequeno e instável salário, mesmo assim ele nos trazia freqüentemente livros. O nome deste maravilhoso livro, de capa dura, era “O Brasil Pela Imagem”. Eu o considero tão importante para o Brasil, como nação, como foram os “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, ou “Geografia da Fome”, de Josué de Castro. Ilustrado por Seth (álvaro Marins), “O Brasil Pela Imagem” é uma obra monumental, toda em bico de pena, sobre a formação do povo brasileiro. Infelizmente hoje em dia poucas pessoas conhecem este livro. Certa vez encontrei uma entrevista do Seth onde ele disse que o fez por amor à pátria e que levou anos e anos para concluí-lo. álvaro Marins, portanto, foi uma de minhas referências, pelo seu conhecimento de Brasil e também por sua grandiosa arte de ilustração.

Este livro foi lançado durante o período de Vargas. A última ilustração é justamente a inauguração da usina de Volta Redonda, hoje privatizada. Aliás, sobre Vargas, eu gostaria de dizer o seguinte: Quando vejo a atual política brasileira e seus bufões, chego à conclusão que nenhum destes presidentes chegam aos pés de Getúlio Vargas. Melhor dizendo. Nenhum destes presidentes chegam à poeira do solado do sapato de Getúlio Vargas. É isso aí. Esta é a minha opinião.

Enquanto garoto você leu quadrinhos?

Na verdade durante a minha infância li muito pouco quadrinhos. Li bastante a revista “Edições Maravilhosas”, da EBAL. Meu pai tinha uma profunda aversão por quadrinhos. Meu irmão Denoy também. Quanto ao hábito que eu tinha de desenhar capas de gibi, o Denoy sempre me dizia uma coisa muito séria: “Rui, você não deve estudar o desenho pelos quadrinhos. Porque você pode criar defeitos que vão permanecer no seu traço ao longo da sua vida, e vai ser difícil superá-los. Você tem que estudar os clássicos!” Veja que Denoy, que era o mais velho, dizia isso para mim quando eu tinha 14 anos de idade. Meu irmão era um gênio! Um jovem de vinte e poucos anos, portanto com pouca experiência de vida, mas com uma profunda intuição e experiência intelectual. “Você tem que estudar os clássicos! Você tem que estudar Rafael! Você tem que estudar Michelangelo! Você tem que estudar esses grandes mestres do desenho, porque eles farão com que você aprenda a desenhar sem estes cacoetes do desenho de quadrinhos”.

Mas eu, como todo garoto da minha época, gostava muito de copiar quadrinhos! Copiava, por exemplo, os desenhos do Andre Le Blanc, Alex Raymond e do Jayme Cortez. Tanto o Le Blanc quanto o Cortez eu vim a conhecê-los pessoalmente muitos anos mais tarde e se tornaram meus amigos, além de serem duas referências pra mim.

Há uma história do Alberto Breccia que vale a pena comentar agora… Ele fazia quadrinhos mas não deixava que seus filhos lessem história em quadrinhos!

É mesmo?

**Sim, ele queria que eles lessem apenas literatura. Ele fazia quadrinhos porque era uma questão de ilustrar as idéias que lia, mas não deixava que este tipo de “literatura” entrasse em sua casa. Então, um dos filhos dele, o Enrique Breccia, lia quadrinhos escondido. O pai trabalhando com quadrinhos e ele lendo escondido! **

Eu também fazia isso, pegava emprestado as revistas em quadrinhos para desenhar as capas. Inclusive tenho guardados até hoje esses desenhos. Mas como já disse, meu pai e meu irmão não gostavam dos quadrinhos e me alertavam muito sobre isso. Meu pai dizia que os quadrinhos poderiam bloquear o gosto pela leitura de livros. Talvez o Denoy se preocupasse mais com o desenho. Hoje eu penso isso. O interessante é que muito mais tarde o Denoy se tornou um importante cineasta, assim como meu outro irmão (Xavier) também, e na década de 80 ele fez um longa utilizando a linguagem dos quadrinhos. “O amigo do Super Homem”, é o nome do filme, uma película muito interessante.

Como foi estudar seis anos de ilustração na Hungria?

Bem, eu era um jovem de esquerda e acreditava piamente na revolução socialista. Acreditava que o mundo marchava para o socialismo… Eu via nos mapas os países que eram socialistas na época e cheguei à conclusão que este avanço era irreversível, que a vitória do proletariado finalmente aconteceria etc. Por isso, e por outros motivos também, passei a me interessar muito pela arte do Leste Europeu. Até porque, eu via na arte do leste da Europa um tipo de grafismo que ainda não estava contaminado pelo vírus capitalista. Vejam bem, estou usando palavras da época! Eu abominava o visual da publicidade, que, para mim, dignificava o capital através da criação, da necessidade de consumo. O meu interesse pelo leste da Europa veio através da política e por acreditar nessa arte gráfica imune ao capitalismo. Pelo menos eu achava isso… Então, estabeleci correspondências com estúdios na Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Bulgária e Rússia. E quando eu recebia os folhetos e catálogos, aquilo pra mim era uma revelação, entende?

**E como foi estudar no leste europeu? **

Como disse, meu interesse veio essencialmente da fé que eu tinha no socialismo e na necessidade de estudar aquilo que eu considerava a verdadeira artes gráficas. Ou seja, aquela voltada para a tradição, para a gravura e para a auto expressão. Na Hungria, estudei design em uma escola onde eu entrava de manhã e saía à noite. Nessa época, comecei a entrar nessas loucuras de trabalhar de madrugada. Sabe, o cara que descobre a madrugada pela boêmia? Comigo foi diferente. Eu a descobri na juventude pelo trabalho e pelo desenho. Tremendo de um babaca, mas tudo bem… (risos) Mas enfim, o Instituto Superior Húngaro de Artes Industriais, que ficava em Buda, foi muito importante para minha formação cultural, artística e técnica. Humana também. Durante seis anos foi assim que vivi, o dia todo estudando…

A vida na Hungria contribuiu para que você acentuasse suas convicções ou, pelo contrário, diluiu um pouco a sua visão de socialista?

Foi essencial vivenciar outra realidade e sair um pouco do casulo brasileiro. Do ponto de vista político, comecei a ver que o socialismo era muito difícil. Tive até muitas decepções no leste da Europa com relação a isso. Descobri o óbvio, que o homem é muito mais complexo do que qualquer ideologia ou filosofia. Chegar a esta conclusão foi um pouco desalentador para mim, mas, ainda assim, vi nessa época uma sociedade muito diferente da nossa, porém bastante alienada. Mas, do ponto de vista do ensino e da saúde pública, muito melhor estruturada.

Vamos falar um pouco de cinema de animação, que foi uma de suas principais referências…

Sim, eu sempre gostei demais de cinema. Até hoje sou vidrado, embora vá menos ultimamente. Mas, quando jovem, eu era um cinéfilo que assistia três filmes durante a semana. Eu tinha um fascínio desde menino por desenhos em movimento. Lembro que assistia àqueles desenhos animados e sonhava: “Puxa, eu um dia vou fazer isso! Desenhos animados que nem os da Disney! Eu vou ser o Disney brasileiro!” (risos).

Você gostava do Disney?

Eu me lembro uma vez que li no livro “A história do cinema”, de George Sadoul, uma frase que dizia: “Disney é o Rafael do mau gosto”. Foi uma crítica severa ao Disney… Eu concordei, claro, pois como jovem de esquerda, achava o Disney um capitalista. Havia um outro cineasta, que se tornou importante na minha formação, que foi o Paul Grimault. Para mim foi um mestre! Fazer animação poética como ele fazia era o que me interessava. Na verdade, eu admirava os desenhos animados dos estúdios Disney. Acho que “Pinochio”, “Bambi” e a “Dama e o Vagabundo” são obras primas dentro do universo de Disney. Isto é importante ressaltar. Mas o que eu queria mesmo era fazer desenhos animados com as animações de Paul Grimault. O estilo de Grimault me influenciou muito. Acredito que até mesmo na ilustração que faço.

Como você teve acesso ao trabalho dele?

Vendo seus filmes na Maison de France. Fazia isso desde os dezesseis anos. Via de tudo. Como disse há pouco, foi o desenho animado que me trouxe para a pintura, que me revelou o cartaz, que me revelou o design. Sim, porque ele é um amálgama de todas as manifestações das artes visuais. O desenho animado é para o cinema o que a ópera é para a música, um espetáculo total onde todas as linguagens artísticas estão envolvidas.

O que mais te atraiu no cinema de animação, especificamente?

Sempre gostei de movimentar meus desenhos. Ainda no tempo da Escola de Belas Artes, estudando o Renascimento, inevitavelmente cheguei aos Maneirismo. Foi uma revelação. Acredito que toda a composição, a figuração que utilizo nas minhas ilustrações, se origina de meus estudos do maneirismo. Até hoje tenho um grande interesse por este período da arte. Sob alguns aspectos, acho o maneirismo mais importante para arte do que o Renascimento. É uma opinião pessoal.

Quanto ao cinema de animação, meus três últimos desenhos animados – “Amor Índio”, “A Lenda do Dia e da Noite” e o “Bravo Pastor” que no momento estou fazendo – eu os classifico com filmes de um ilustrador. No momento, o que me atrai no cinema de animação é a possibilidade de juntar a ilustração ao movimento.

Por outro lado, penso em fazer filmes futuramente que resgatem o grafismo ancestral do desenho animado. Admiro muito os chamados “primitivos” da animação, ou seja, os anos 10, 20 e 30. O cinema de animação que faço hoje é o de um ilustrador fazendo animação. Eu tenho preocupações com o cenário, com a questão plástica e gráfica. Ao separar estes dois termos é com a intenção de colocar o desenho animado como puro grafismo. Papel, tinta e uma câmera fixa. Acho o atual virtuosismo plástico do cinema de animação, principalme o 3D, muito perigoso. Melhor dizendo, enganoso. Atualmente alguns filmes de animação são verdadeiros kitsch do cinema de seqüência viva. Mas isto é uma outra história…

Atualmente, a maior parte do seu trabalho destina-se à ilustração para livros. Conte-nos um pouco sobre isso.

Ilustrar foi um desdobramento natural do meu trabalho e também uma escolha influenciada por minha paixão pela literatura. Pra mim ilustração é um gênero de literatura. Acho que ilustrar é escrever por imagens. Curiosamente, este interesse aconteceu de maneira tardia em minha vida, quando eu era estudante na Europa. De volta ao Brasil, trabalhei como designer na televisão por um tempo e só comecei a trabalhar sistematicamente como ilustrador de literatura a partir de 1983. Na televisão, eu era sintético, blocado, concêntrico, depurado, enfim, extremamente designer. O grafismo na TV é atemporal, isto é, não conta histórias. São alegorias gráficas sintéticas em um sistema de “arma e desarma”. Graficamente, o design em televisão é como se fosse uma fuga de Bach. Uma figuração abstrata. Parece um paradoxo. Mas é assim que sempre vi meu trabalho na televisão – uma figuração assentada na abstração.

O melhor projeto de abertura é aquele que tem o espaço conceitual mais apurado e mais desenvolvido do que o espaço aéreo, apesar – pelas próprias características da novela – de ter feito, nas aberturas e vinhetas do Sítio do Picapau Amarelo, na Globo, desenhos com um grande apelo à profundidade espacial, modelando as figuras, utilizando luz, sombra etc. Na TV-Educativa, procurei eliminar todo processo narrativo de meu trabalho. Era forma e contra-forma. Juntando Globo e TV-E, trabalhei oito anos como designer em televisão.

A ilustração funcionou como uma antítese, um contraponto à rigidez e ao racionalismo imposto pela mídia eletrônica.

Como ilustrador, eu podia ser extremamente o oposto, isto é, podia ser ambíguo, prolixo, barroco, expressionista, impressionista, dependendo do texto. Penso que meu trabalho em ilustração é uma junção oscilante, alternada entre o clássico e o romântico. Entre Apolo e Dionisius. Tenho veneração pelo clássico e pelo neoclassicismo, ao mesmo tempo adoro o Romantismo. Na minha visão pessoal, a arte da ilustração se sedimenta, se nutre e se renova na contradição.

Hoje meu trabalho é fundamentalmente centrado nos livros, como capista e designer.

Quer dizer, você se dedica mais aos livros do que qualquer outra coisa. Mais do que aos filmes de animação, por exemplo…

Filmes de animação precisam de patrocínio. Todos os filmes que fiz até hoje foram produzidos a partir de prêmios que recebi em concursos oficiais de roteiros Ou então estavam ligados a órgãos oficiais do Governo. Eu não tenho condições de bancar um filme de animação, e também jamais vou fazer animação publicitária por exemplo. Não tenho nada contra quem faz. Eu quero fazer desenhos animados como fiz até hoje: étnicos, culturais, especulativos e filosóficos. Pra mim, cinema de animação é a expressão do curta. Não vejo cinema de animação como longa metragem. É comparar ópera com opereta. Uma sinfonia com um quarteto de cordas. Sempre esclarecendo que isto é uma visão pessoal.

Rui, fale um pouco sobre o desafio que representa ilustrar literatura.

Posso começar falando das limitações impostas ao ilustrador. Como ilustrador, eu não posso inventar um texto. Ele simplesmente se apresenta para mim. Eu posso até burlá-lo, escamoteá-lo e até mesmo superá-lo tecnicamente em termos de expressão, de criatividade e invenção, mas eu não posso criar um texto novo – o texto é aquele que me dão para ilustrar. Sem querer me eximir de culpas, eu acho que, se às vezes tenho problemas na ilustração, na verdade eles se originam no trabalho do escritor. Eu faço enquanto ilustrador metáforas visuais, os escritores fazem metáforas literárias. O que eu quero dizer é que as questões das letras pertencem às letras. Por exemplo: há poucos dias uma escritora me fez o seguinte comentário: “Vocês ilustradores deveriam desenhar mais os negros!”. Eu respondi: “Mas onde estão os textos sobre os negros?”. Apesar de esta situação ter mudado muito nos últimos anos, a verdade é que, na literatura infanto-juvenil, quase não existem textos sobre negros no Brasil.

No momento, estou ilustrando um belo livro da editora SM escrito pelo Rogério Andrade Barbosa. O nome do livro é “ABC da áfrica”. Depois desse, vou ilustrar para Nova Fronteira um livro infanto-juvenil passado na áfrica. Ele foi escrito pelo embaixador Alberto da Costa e Silva, que é um especialista em temas africanos. Isso é um fato novo. Não importa se é ou não direcionado por uma exigência oficial. A realidade é que até então entre os 110 livros que ilustrei apenas três envolviam o universo dos negros.

Como é sua rotina de trabalho?

Acredito, sem muito certeza, não ser um alienado. Mas devo confessar que só penso no meu trabalho. Detesto sair à rua, e fico agoniado para voltar logo para o meu mundinho, meu estúdio, minhas músicas, minha mesa de trabalho, onde me aguarda uma imagem. Se não estou desenhando, tenho a impressão que estou perdendo tempo. Minhas leituras, a música que escuto, o cinema que vejo, tudo eu direciono para o meu trabalho. Gosto muito de contemplar, não procurar função ou causa, mas, intimamente, pessoalmente, não tenho um olhar desinteressado. Quando estou com um “abricó de macaco” em minha mão, eu penso em design. Não tenho, nesta altura do campeonato, nenhum constrangimento em afirmar que acordo pensando em desenho e vou dormir pensando em desenho.

Aprender a representar o mundo é um esforço longo, gradual. É um processo de apreensão que é também físico, e que deve ser constantemente exercido. Por este motivo, sou adepto ferrenho da disciplina – acordar cedo, aproveitar ao máximo a luz do dia. Só não coloco um relógio de ponto no meu estúdio porque aquele barulho me lembra o tempo que fui bancário, comerciário. Trabalhando sozinho, acho que isto seria um pouco ridículo, vocês não acham? Ou não? (risos).

Você se posicionaria como um conservador em relação à arte?

De forma alguma. Tenho maior respeito pela arte abstrata, pelos movimentos de arte conceitual dos anos sessenta por exemplo. No caso da arte abstrata, a considero um dos momentos máximos da cultura do ocidente. Veja Kandinsky, Mondrian, Malevitch e a longa gestação pela qual passaram até chegar à abstração. Tenho profunda admiração pelo construtivismo, pelo neoconcretismo e suprematismo russos, tenho profundo respeito pelo De Stijl… Eu gosto demais deles! Eu gosto e os estudo porque eles eram artistas de verdade. Tenho uma grande admiração pela obra de Rothko e de Gottlieb. Apesar de ele jamais ter chegado à abstração, em minha opinião, acredito que o estudo do expressionismo abstrato de De Kooning é fundamental na formação de um ilustrador. Para conceituar a ilustração, que é inexoravelmente figurativa, em muitos textos que fiz em minha pós gradução, tanto no mestrado quanto no doutorado, utilizei os princípios da arte abstrata (ao contrário).

Vai uma grande diferença entre as experiências sensoriais propostas por Picabia – nas décadas de 10 e 20 do século passado – e estes atuais enganadores, picaretas, com suas performances, borrões decorativos, instalações e “objetos de arte”. São pintores “abstratos” “desde de criancinhas”. Já nasceram abstratos. Você conhece alguma fase figurativa, longa e consistente, destes pintores “abstratos” japoneses lá de S. Paulo? Só gostaria de lembrar um elemento para reflexão: após tantas experiências conceituais, a arte do século XX passa para o século XXI com três grandes figurativos – Lucien Freud, Francis Bacon e Hockney. Não é interessante isso? Principalmente se considerarmos que, neste início de século, um dos artistas de maior impacto é o australiano Ron Mueck, com suas gigantescas esculturas hiperrealistas de fibra de vidro e resina. Ainda sobre estes artistas realistas que estão passando de um século para outro, queria dizer que gosto muito do trabalho da Paula Rego, uma pintora portuguesa. Na minha opinião, ela é um novo Balthus, talvez até mais profundo que ele.

Em seu processo de trabalho o fazer influencia a criação ou tudo ocorre de forma puramente mental?

É muito complicado teorizar sobre isso. O próprio Jean Cocteau tem uma frase muito importante, que diz: “O artista não queima etapas.” O material é inteligente. A forma é inteligente. Eu não faço no meu trabalho a distinção entre forma e conteúdo. O material tem voz própria, quer dizer, a voz própria que você está querendo dar ao seu trabalho não depende somente de sua “voz interior”, mas também depende da voz daquilo que está lá, impregnando o papel. E o papel tem voz! Tem som. É preciso deixar, em determinado momento, que ele fale por você. É um diálogo. Não é uma conversa de via única. A compreensão e o domínio do material são o transporte mais legítimo para o transcendental. Se você não domina o material, você não pode ir à transcendência. Absolutamente não acredito nesta arte sem ofício.

O culto atual ao não objeto, à mitificação do virtual e do conceitual, esta arte sobre a qual se fala mas não se vê, profundamente verbal e literária, seria mais sincera se assim fosse declarado pelos seus criadores: “tudo isso é para encobrir que não sei desenhar um “O” com um copo. Meu domínio motor não me possibilita nem pentear meu cabelo, tomar sorvete ou amarrar o meu sapato”. Grande parte das obras que vejo atualmente nas galerias não é um problema da arte, é um problema do artista saber ou não abotoar uma camisa.

Conte pra gente sobre etapas do seu trabalho, se existe um passo-a-passo, pesquisa, esboços…

Acredito que toda revelação se origina de um mistério. Em outras palavras, o que estou querendo dizer é que você só descobre aquilo que já existe. Qualquer trabalho que faço passa antes por uma fase de referências e pesquisas. Quando começo a ler um texto e esboçar as ilustrações, já penso logo qual o estilo apropriado àquelas palavras, e onde está este estilo. Melhor dizendo: onde está o modo de fazer. Não gosto de usar a palavra estilo. Freqüentemente, gasto mais tempo nestes antecedentes do que na própria realização do livro. Vocês podem ver que estou com alguns livros aqui em cima… Eu passo mais tempo assim, olhando um drapeamento, uma bota, um detalhe de arquitetura… Só depois de fazer todo esse inventário é que começo a desenhar. Se quero desenhar uma árvore fantástica, eu vou ao Parque Laje ou ao Jardim Botânico. O fantástico está no real, não na realidade. Através de uma foto eu não conseguiria perceber o quanto elas são fantásticas. A foto já é uma leitura. Real? Enganosa? Difícil saber. O interessante é quando podemos nomear aquilo que estamos desenhando. Até mesmo a memória que eu tive daquela árvore pode ser enganosa. Creio que, no trabalho de um ilustrador, a memorização existe, porém, quanto mais eliminarmos a memória, melhor será. Dou muito valor ao olhar táctil em meu trabalho. Nos dedos estão os nossos melhores olhos.

Ao iniciar um trabalho, quando termina o desenhista e começa o ilustrador?

Eu acho que a ilustração começa quando você domina a narração. Muitas vezes o ilustrador não possui um bom adestramento técnico, mas tem uma grande capacidade narrativa. O inverso também acontece, por isso acredito também que o excesso de virtuosismo pode mais confundir do que contar uma história. Eu acho que o desenho é o fundamento, mas a ilustração só começa quando a narrativa começa. Eu posso fazer um belo desenho sem querer dizer nada. Ele é apenas um desenho que se auto-justifica. A auto-justificativa na ilustração é quando você estabelece elos narrativos centrais e paralelos. O cineasta russo Eisenstein dizia que o seu filme se concluía com a participação e no interior de cada espectador. Portanto, importando esse conceito do Eisenstein, eu acho que quem completa a ilustração é o leitor.

Ao longo de sua carreira você tem experimentado diversos estilos. Pode nos falar disso?

Esta é uma questão muito delicada. Muito pessoal. Tudo o que vou dizer pertence ao meu olhar e ao meu fazer ilustração. Há muitos anos que não utilizo a palavra “estilo” em meu trabalho. O que é o estilo? Um instrumento?. Uma ferramenta? Um modo característico e fixo de ser?

Em lugar de estilo passei a utilizar a palavra abordagem.. Claro que existe sempre em seu trabalho um DNA. Existem fixações que permanecem e reaparecem em meus desenhos desde criança. Existem elementos e soluções que são imutáveis em nosso trabalho. Por mais que você mude tudo, ela está sempre lá lhe espreitando à sombra, em algum recanto da ilustração. Como disse: é o seu DNA.

Nada contra aos ilustradores que começam a ilustrar de uma maneira e seguem com ela a vida inteira. Um evolução gradual. Até mesmo previsível. Pessoalmente acho o estilo, como é comumente entendido, um fenômeno de auto-cópia. Mas isto não é uma verdade absoluta – é apenas a minha opinião.

Como virtude ou defeito, tenho uma preocupação de mudar sempre. Não é só por causa da literatura. Vez por outra eu digo: – para cada palavra uma imagem! Mas isso é uma coisa muito teórica. Na verdade, eu mudo para não ficar no mesmo lugar. Ninguém me cobra nada. Muitas vezes não é necessário mudar, mas eu busco sempre fazer algo que renove o meu trabalho.

Muito desta pesquisa de estilos e de diferentes soluções gráficas que fiz ao longo dos livros que ilustrei é previamente realizada nos meus cadernos de desenho. As soluções para mim surgem dos desenhos que são feitos freqüentemente sem função nenhuma. Por que isso? Porque eu não sei o que vou desenhar amanhã. Considero essa dúvida essencial. Vejo a ilustração como uma pergunta, não uma resposta ou constatação. Eu não saberia desenhar o livro “Os Três Contos da Sabedoria Popular”, do Rogério Andrade Barbosa, da mesma maneira que ilustrei “Pena de Ganso”, da Nilma Lacerda ou o “Cartas Lunares”, com meu texto. Estes três livros foram desenhados praticamente um após o outro. Comparo muito o trabalho de um ilustrador ao trabalho de um ator como Dustin Hoffmann, ou Peter Sellers, por exemplo. Aliás, eu acho a sintaxe teatral muito próxima da ilustração.

Fale um pouco agora dos seus cadernos de esboços, que são muitos. É possível afirmar que eles são os lugares ideais para reinventar as próprias idéias?

Meus moleskines são relicários… Posso até dizer assim: todos os desenhos dos meus cadernos possuem asas, e só estão esperando a hora certa para voar. Aqueles desenhos que ficam, ali guardados, ainda não falam com você, mas algo está implícito, como se me dissessem: “olha, você me deixa aqui e daqui a dez anos nós vamos nos encontrar”. Então, assim como as pessoas possuem diários, eu possuo meus cadernos, onde narro em forma de desenho o meu cotidiano. Registro ali somente o momento, porque os cadernos de desenhos não têm nenhuma coerência – hoje eu posso desenhar uma coisa e amanhã outra, depois outra, outra… Mas é justamente essa incoerência, essa ausência de seqüencialidade, ou melhor, é essa aparente ausência de seqüencialidade que me anima a fazer sempre estes rabiscos. A história da sua ilustração, na verdade, está narrada nos cadernos de desenhos e não nos livros que você ilustra. O livro que ilustro é uma conseqüência direta do que há nos meus moleskines. Se vocês me perguntarem onde está a fonte do meu trabalho, sua gênese criativa, eu diria que ela está nos meus cadernos de desenhos. Acho que, para sermos objetivos, temos que antes exercitar a nossa subjetividade. Pra mim, a função surge de algo aparentemente não objetivo. Por este motivo, chamo estes meus cadernos de “desenhar por desenhar”. O prazer de desenhar é sempre generoso quando logo após precisamos de objetividade para desenhar e encontrar soluções.

Durante o processo de produção do seu trabalho, como é sua relação com os outros profissionais envolvidos, editores, designers, escritores, etc? Você têm total liberdade?

Bom, eu tenho liberdade para trabalhar, sim. Eu raramente mostro o layout, raramente tenho contato com o escritor, essa é que é a verdade. Gosto muito de conversar com escritores que ilustro. Não vejo também nenhum problema quando um editor tem a curiosidade de saber o que vou fazer. Até pelo fato de eu mesmo não saber o que vou fazer. Usando um termo de teatro, geralmente me dá um “branco” antes de começar qualquer livro.

Voltando ao escritor, o fato de ele pensar em metáforas literárias, isto não é uma barreira para um bom diálogo. Lógico que a atuação de um escritor e mesmo do editor tem um limite.

Você não está numa mesa espírita psicografando visualmente um texto. Intepreto o texto como os músicos compositores indicam seus movimentos. O que é um “adágio lamentoso”? Um “lento ma no troppo”? Como vou interpretar isso? O lamentoso pra mim pode ser muito mais ralentado do que o escritor imaginou. O piano de Glen Gould intepretando Bach é totalmente diferente de Cláudio Arrau tocando também ao piano a mesma peça. Com a sua abstração, a música nos ensina muito, principalmente quando consideramos o seu oposto, ou seja, a figuração e a concreção que são próprias da arte de ilustrar.

Já com relação aos designers venho trabalhando ultimamente muito com eles. Um designer de livro talentoso possui um sentido arquitetônico e de espaço que muitas vezes o ilustrador não tem. Quando era possível, sempre fiz o projeto gráfico dos livros que ilustrei. Hoje em dia, estou querendo mudar isso.

O livro é uma sucessão de espaços, certo? Espaços em branco, espaços preenchidos… Essa relação do cheio e do vazio é o designer quem pode equilibrar, porque se deixarmos ao critério e ao gosto do ilustrador, na maioria das vezes, ele só vai optar pelo pleno espaço, que são as ilustrações dele. As ilustrações devem sempre estar sujeitas ao conjunto total do livro, e o designer pode harmonizá-lo muito bem. Ele é um contraponto. Um designer que tenhamos afinidade pode ser perfeitamente o nosso alter-ego. Por essa razão, eu tenho chamado designers para colaborarem em meus trabalhos. Mas acho que o ilustrador deve ser o diretor de arte de seu livro, não o designer.

E a parte digamos mais técnica, de concepção do livro como objeto?

A primeira necessidade que tenho é de ver o livro como um conjunto, quer dizer, não vê-lo página por página, e sim enxergá-lo no todo. Eu desenho a capa aberta, incluindo as orelhas, a lombada e a quarta capa, e penso no livro como um teatro. Há o palco, o proscênio, a cortina, a porta do teatro, que seria a capa do livro. O frontispício e o falso rosto seriam as cortinas, onde vai começar a peça. O livro é assim, uma espécie de caminhada que você vai fazendo ao longo da capa. A capa não é o livro, é uma introdução, uma alegoria ao universo do livro. A capa funciona à maneira de uma abertura de ópera, contendo todos os elementos do livro, mas não sendo o livro. Depois vem o falso-rosto, o frontispício, ficha catalográfica, prefácio. Todos esses elementos pré-textuais são seqüenciais e por isso precisam ser planejados em uma folha única, porque só assim eu consigo dominar o conjunto do meu trabalho. Logo após isso, eu faço a boneca do livro em formato um por um, onde eu adiciono os textos. Geralmente eu monto os textos impressos na boneca. Eu prefiro fazer isso à mão, gosto de trabalhar sensorialmente, no tato mesmo. Enfim, sempre penso no livro como uma criação primeiramente táctil.

Você é um ilustrador há muitos anos. Durante esse período as mudanças tecnológicas tiveram um profundo impacto sobre as artes gráficas. Pode nos falar sobre isso?

Eu acho que o material atua no conteúdo. Por exemplo, não existiria Aleijadinho sem a pedra sabão. Não existiria um Lautrec como cartazista sem o descobrimento da litogravura. A própria estatuária grega não seria o que conhecemos caso a Grécia não fosse um país de solo tão pedregoso. A arquitetura de Chicago sem o ferro não seria a mesma. Michelangelo não esculpia sempre da mesma maneira – suas estátuas dependiam do tipo de mármore em que ele trabalhava. Assim, concluímos que o material atua na criação. A ilustração não foge a isso. Os avanços tecnológicos, os processos de impressão, os novos materiais e ferramentas, adicionaram uma nova linguagem e estética ao nosso trabalho. Hoje, podemos enviar e até mesmo fazer todo o nosso trabalho no computador. Eu não faço, mas sei que é possível fazer tudo isso sem ter nenhum contato físico com ele. Enfim, todos esses recursos da tecnologia atuam no estilo e na linguagem da ilustração. A facilidade do computador, especialmente em se tratando de montagens, trouxe um danoso “bom gostismo” no uso de tipologia por exemplo.

Quando eu era bem moço, estudei na Escola de Artes Gráficas do Senai, aqui na Tijuca. Lá eu pratiquei e aprendi composição manual e mais tarde trabalhei na montagem de fotoletras. Acho que os erros absurdos no espacejamento entre letras e entre linhas que você vê a toda hora em capas de livros, anúncios e folhetos se devem ao fato de que a formação do designer atualmente, em termos de tipologia, já começa no computador. Esta geração de designer, na verdade meros micreiros, está fazendo um mal irreparável à arte da letra e ao design de modo geral.

Quanto a mim, eu quero remar conta a maré! Prefiro criar e desenhar à mão todas as letras dos livros que ilustro. Isso é uma coisa que não abro mão pra computador nenhum!

Quando começamos um trabalho sempre existe um leque de possibilidades em relação às técnicas e uso de referências. Como você lida com isso?

Muitas vezes eu faço um livro para experimentar uma técnica. Freqüentemente a técnica que escolho é sempre compatível com a literatura que estou trabalhando. Ela precisa estar próxima à atmosfera literária do escritor. Mas, por outro lado, certas vezes eu tenho necessidade de pesquisar, de averiguar certos recursos materiais. Neste caso, eu tento adaptar a literatura ao que quero fazer. Sinceramente é isso.

Rui, eu acredito que em cada trabalho que fazemos, aprendemos duas vezes. Primeiro, por conta da pesquisa de referências. Segundo, no próprio desenvolvimento dos desenhos, quando aprendemos a lidar com aquele tema, naquelas determinadas circunstâncias, de um jeito novo. O que você acha?

É verdade. Quando trabalho com pesquisa, fico diante de livros tão díspares… Recentemente ilustrei “Fausto” com texto de Marlowe. Amanhã, ilustrarei um livro de conto de fadas e assim por diante. A pesquisa para o trabalho faz com que você construa um acervo dentro de si e assim, quando surgir a necessidade de usá-lo, você saberá exatamente onde estarão as informações de que necessita. No ato da pesquisa sobre alguma coisa, eu acabo encontrando outras e isso ajuda a criar uma memória criativa, possível de ser acionada facilmente quando necessário.

No seu entender, por que o ilustrador deve conhecer Literatura?

Eu acho que o conhecimento da técnica literária muito interessante para o ilustrador. Conhecer os diversos estilos e saber porque surgiram, enfim, a história da literatura é importante não só por situar o ilustrador diante do texto, mas também porque o guiará na procura das referências correlatas àquele texto. É interessante que ele saiba bem o estilo literário sobre o qual está trabalhando, para que ele possa se posicionar como ilustrador. E numa outra abordagem, considero também fundamental que o ilustrador possua uma bagagem, tanto de leitura quanto de escrita, não somente para saber ler e interpretar os textos que vai ilustrar, mas principalmente para ter subsídios para escrever e ilustrar suas próprias histórias. Essa sim é uma grande conquista, talvez a maior que um ilustrador pode realizar.

Teria algumas palavras finais para quem escolheu a carreira de ilustrador?

Primeiramente agradeço todo este apreço, esta gentil referência que você e o Gabriel têm pelo meu trabalho, bem como esta oportunidade de falar sobre ilustração e arte de modo geral. Fico também muito feliz e agradecido por este belo livro, este belo projeto que vocês fizeram sobre os principais livros que ilustrei.

Como palavra final aos jovens ilustradores, eu diria que o fato de criarmos com nossas imagens a memória feliz das pessoas, só isso dignificaria a nossa profissão. Sou muito otimista quanto ao futuro da imagem narrativa. Não existem mais nas grandes cidades os contadores de histórias ao redor das fogueira. Nós, ilustradores, somos os novos “griôs”, a narração visual é um elemento civilizatório. Todas as grandes civilizações surgiram de grandes narrações. A Bíblia, o Gilgamesh, o Mahabharata, Ilíada e Odisséia, até mesmo livros fundamentais para a cultura ocidental como Decameron, Contos de Cantuária, Os Luzíadas, A Divina Comédia, todos estas histórias sedimentaram povos e nações.

Portanto, sem exagero, eu vejo a imagem narrativa como um elo, uma trilha entre o abstrato e o concreto. As nossas ilustrações são esfinges que cada leitor decifra à sua maneira. Portanto, vale a pena trabalhar direito e ser honesto.